A Integração entre Diferentes Instituições e Setores da Sociedade para o Conhecimento da Biologia e a Conservação do Criticamente Ameaçado Aracuã-guarda-faca (Ortalis remota Pinto, 1960)
Albert G. de Aguiar1,2*, Adriano R. Lagos3, Alex A. A. Bovo4,5,6, Guilherme Freitas7, Carlos O. A. Gussoni1, Marco A. G. Silva1, Matheus A. M. Bernardo1, Alexandre G. Franchin8, Rafael Fiúza Lanna8, Rafael Cassani9, Clarice A. C. Cardoso10,
Felipe V. Manzano3, Mauro G. Diniz7, Henrique Belfort Gomes11, Antônio E. A. Barbosa6, Vincent K. Lo12,
Katia M. P. M. B. Ferraz4,5 e Pedro F. Develey1
Recebido em 24/05/2022 – Aceito em 22/08/2023
1 SAVE Brasil – Sociedade para Conservação das Aves do Brasil (BirdLife International no Brasil). Rua Fernão Dias, 219, cj 2, Pinheiros, São Paulo/SP, Brasil. CEP: 05.427-010. <agaguiar@outlook.com, cogussoni@gmail.com, marco.silva@savebrasil.org.br, matheus.bernardo@savebrasil.org.br, pedro.develey@savebrasil.org.br>.
* Contato principal.
2 Permian Brasil. Av. Paulista, 1765, Bela Vista, São Paulo/SP, Brasil. CEP: 01.311-930. <albert.aguiar@permianglobal.com>.
3 FURNAS Centrais Elétricas S.A. – Empresa Eletrobras. Av. Graça Aranha, 26, Centro, Rio de Janeiro/RJ, Brasil. CEP: 20.030-000. <adrianolagos@gmail.com, fvmanzano@gmail.com>.
4 Laboratório de Ecologia, Manejo e Conservação de Fauna/LEMaC, Departamento de Ciências Florestais. Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, Universidade de São Paulo, Av. Pádua Dias, 11, Agronomia, Piracicaba/SP, Brasil. CEP: 13.418-900. <alex_bovo@hotmail.com, katia.ferraz@usp.br>.
5 IUCN SSC Grupo Especialista em Planejamento de Conservação/CPSG Brasil. Av. das Cataratas, 12450, Vila Yolanda, Foz do Iguaçu/PR, Brasil. CEP: 85.859-899. <alex_bovo@hotmail.com, katia.ferraz@usp.br>.
6 Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Aves Silvestres/CEMAVE, Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade/ICMBio. BR 230 km 10, Renascer, Cabedelo/PB, Brasil. CEP: 58.108-012. <alex_bovo@hotmail.com, antonio-eduardo.barbosa@icmbio.gov.br>.
7 AES Brasil Operações S.A. Rod. Comandante João Ribeiro de Barros, km 348, Distrito Industrial III, Bauru/SP, Brasil. CEP: 17.064-868. <guilherme.freitas@aes.com, mauro.diniz@biocev.net>.
8 Grupo Biocev – Projeto Inteligentes. Rua dos Inconfidentes, 867, 2º Andar, Savassi, Belo Horizonte/MG, Brasil. CEP: 30.140-128. <agfranchin@gmail.com, RafaelLanna82@gmail.com>.
9 Instituto de Pesquisas Ecológicas/IPÊ. Rodovia Dom Pedro I, km 47, Moinho, Nazaré Paulista/SP, Brasil, CEP: 12.960-000. <rafa.cassani25@gmail.com>.
10 Autarquia de Serviços de Obras de Maricá/ SOMAR. Rua Raul Alfredo de Andrade, s/n, Caxito, Maricá/RJ, Brasil. CEP: 24.900-000. <clariceacc@gmail.com>.
11 Instituto Estadual de Florestas/IEF MG. Rodovia João Paulo II, 4143, Bairro Serra Verde, Belo Horizonte/MG, Brasil. CEP: 31.630-900. <henrique.belfort@biocev.net>.
12 Núcleo de Licenciamento Ambiental do IBAMA/SP. Alameda Tietê, 637, Jardim Paulista, São Paulo/SP, Brasil. CEP: 01.417-020. <vkurtlo@gmail.com>.
RESUMO – O Brasil é um dos países megadiversos reconhecidos pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA). Para preservar essa biodiversidade diversas estratégias têm sido assumidas, e uma das principais vêm das políticas públicas: os planos de ação nacional para a conservação de espécies ameaçadas de extinção (PANs). No PAN das Aves da Mata Atlântica diversos atores participam do planejamento e na execução das ações para a conservação de diversas espécies ameaçadas que ocorrem no bioma, como o aracuã-guarda-faca (Ortalis remota, Pinto, 1960), criticamente ameaçado em nível nacional. Para garantir a conservação dessa espécie, órgãos ambientais, empresas privadas, organizações não-governamentais e universidades uniram esforços para realizar estudos sobre sua distribuição, o que gerou um modelo de distribuição usado para buscas por novas populações e, que permitiu também a priorização das áreas destinadas à conservação da espécie. Este trabalho resultou na identificação de 266 indivíduos restritos às florestas ripárias remanescentes, aumentando a população conhecida da espécie para 13 municípios, exclusivos ao estado de São Paulo. Além das informações obtidas que irão embasar novas ações para promover a conservação do aracuã-guarda-faca, este estudo mostra a importância da integração dos diferentes setores da sociedade para efetivação dos PANs.
Palavras-chave: Cracidae; Ortalis guttata remota; políticas públicas; conservação da biodiversidade; modelagem de distribuição de espécies.
Integrating Different Institutions and Sectors of Society for the Knowledge of Biology and the Conservation of the Critically Endangered Pinto’s Chachalaca (Ortalis remota Pinto, 1960).
ABSTRACT – Brazil is one of the mega-diverse countries recognized by the United Nations Environment Programme (UNEP). To preserve this biodiversity, Brazil has adopted several strategies to combat its biodiversity loss. One of the central policies is the creation of National Action Plans (PANs) to conserve endangered species. In the National Action Plan for the Conservation of Atlantic Rainforest Birds, several players plan objectives and execute the actions to conserve threatened species in the biome, such as the Ortalis remota (Pinto’s Chachalaca). To guarantee the conservation of this species, environmental agencies, private companies, non-governmental organizations, and universities joined forces to carry out studies on the distribution of the species, which generated a distribution model used to search for new populations and also allowed the prioritization of areas dedicated to its conservation. This work resulted in the identification of 266 individuals restricted to gallery forests, increasing the species’ known population to 13 municipalities exclusive to the State of São Paulo. Besides the information obtained that will support new actions to promote the conservation of the Pinto’s Chachalaca, this case shows the importance of integrating different sectors to implement the PANs.
Keywords: Cracidae; Ortalis remota guttata; public policies; biodiversity conservation; species distribution model.
Integración entre Diferentes Instituciones y Sectores de la Sociedad para el Conocimiento de la Biología y la Conservación del Chachalaca (Ortalis remota Pinto, 1960), en Peligro Crítico de Extinción
RESUMEN – Brasil es uno de los países megadiversos reconocidos en el Programa de las Naciones Unidas para el Medio Ambiente (PNUMA). Para preservar esta biodiversidad se han adoptado varias estrategias, una de las principales proveniente de políticas públicas, como los Planes de Acción Nacionales para la Conservación de Especies Amenazadas (PAN). En el PAN Aves del Bosque Atlántico, varios actores participan en la planificación y ejecución de acciones para la conservación de varias especies amenazadas que se presentan en el bioma, como lo Ortalis remota, en peligro crítico de extinción a nivel nacional. Para garantizar la conservación de esta especie, agencias ambientales, empresas privadas, organizaciones no gubernamentales y universidades unieron esfuerzos para realizar estudios sobre la distribución de la especie, lo que generó un modelo de distribución, utilizado para buscar nuevas poblaciones y que además permitió priorizar áreas designadas para la conservación de la especie. Este trabajo resultó en la identificación de 266 individuos restringidos a bosques de galería, aumentando la población conocida de la especie a 13 municipios, exclusivos del estado de São Paulo. Además de la información obtenida que apoyará nuevas acciones para promover la conservación del Ortalis remota, este estudio muestra la importancia de integrar diferentes sectores de la sociedad para implementar los PAN.
Palabras clave: Cracidae; Ortalis remota guttata; políticas públicas; conservación de la biodiversidad; modelo de distribución de especies.
Introdução
O Brasil é um dos 17 países megadiversos reconhecidos pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), por fazer parte de um grupo de nações com elevados índices de biodiversidade e endemismo, e que juntas, abrigam cerca de 70% da diversidade terrestre no planeta (UNEP, 2022). Contudo, a perda de biodiversidade em curso ameaça os sistemas naturais dos quais a humanidade depende (Wilson, 2016; Jaureguiberry et al., 2022), sendo reconhecida, inclusive, como a sexta extinção em massa, relacionada à industrialização e ao crescimento populacional humano (Ceballos e Erlich, 2018; Cowie et al., 2022). Essas intervenções antrópicas nas áreas naturais, favorecem o aparecimento de vírus causando pandemias e crises humanitárias, como ocorreu na pandemia do coronavírus (Covid-19) em 2020 e 2021 (Lawler et al., 2021). Outras pandemias estão sendo esperadas devido à crise climática, motivo pelo qual essas duas grandes crises precisam ser geridas de forma conjunta (Pettorelli et al., 2021).
Por conter grande parte da biodiversidade mundial (~20% das aves e 14% dos mamíferos do mundo), o Brasil tem grande relevância internacional na proteção da biodiversidade, principalmente pelas soluções baseadas na natureza, como a restauração florestal, que garantirão um futuro sustentável para as gerações futuras (Gastauer et al., 2021). O país é, contudo, o sexto em número de táxons ameaçados de extinção, com mais de 2000 espécies em algum critério de risco (IUCN, 2022). Considerando apenas as aves, o Brasil é o terceiro mais diverso, com 1971 espécies (Pacheco et al., 2021). Infelizmente, essa diversidade está em risco, pois o país ocupa a segunda posição no ranking global de aves ameaçadas de extinção: são 153 linhagens evolutivas em risco de desaparecer, caso nada seja feito para reverter esse cenário (BirdLife International, 2023).
Nesse sentido, diversas estratégias foram assumidas no Brasil para o combate à perda da biodiversidade (CBD, 2010; Vercillo et al., 2022). Uma das principais políticas públicas nesse contexto são os planos de ação nacional para a conservação de espécies ameaçadas de extinção (PANs), que priorizam estratégias e metas, orientando a tomada de decisões para o enfrentamento do risco de extinção experimentado por vários alvos de conservação. Os PANs são instrumentos de gestão, com a premissa de serem construídos de forma participativa, e que deverão ser utilizados para o ordenamento das ações para a conservação de seres vivos e ambientes naturais, levando em consideração um objetivo definido, uma escala temporal e a disponibilidade de recursos para sua execução (Presidência da República (Brasil), 2018). Assim, priorização é um dos pontos críticos de um PAN, pois as ações neles contidas precisam ser classificadas quanto ao nível de prioridade, sendo apresentadas em ordem de importância, relevância e urgência para o alcance dos objetivos estabelecidos, como tem sido observado em diversas Estratégias Nacionais de Biodiversidade e Planos de Ação (NBSAPs), elaborados em diferentes países (CBD, 2020).
Alguns países megadiversos incorporaram os PANs em suas políticas públicas de conservação da biodiversidade bem antes da publicação da Convenção da Diversidade Biológica, em 1992. No Brasil, os instrumentos legais que suportam ações para a conservação de espécies datam do começo da década de 1980 (Brasil, 1981; MMA, 2017). Embora legalmente reconhecidos desde 1981, mais de 20 anos se passaram até a publicação do primeiro PAN no Brasil, focado no mutum-do-sudeste (Crax blumenbachii Spix, 1825) em 2004, elaborado em uma parceria com o então Programa do Brasil da BirdLife International (IBAMA, 2004). O processo de elaboração dos PANs, sob responsabilidade do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), é baseado no documento Strategic Planning for Species Conservation: a Handbook (IUCN, 2008), e respaldado pela Instrução Normativa n. 21 do ICMBio, de 18/12/2018. Desde seu início, em 2004, 71 PANs estiveram ou estão em execução no Brasil, cobrindo cerca de 880 espécies. O abrangente PAN das Aves da Mata Atlântica é o que contempla, dentre outros, o aracuã-guarda-faca (Ortalis remota, Pinto, 1960), uma espécie considerada Criticamente em Perigo em âmbito nacional (MMA, 2022) e estadual (Decreto n. 63.853, 2018), e que apenas recentemente foi taxonomicamente reavaliado e recebeu suporte para ser considerado espécie plena (Silveira et al., 2017; Gussoni e Silva, 2021).
Dentro desse contexto, esta publicação apresenta um caso de sucesso da união de esforços entre governo, universidades, setor privado e organizações não governamentais, representadas, nesse caso, pelo ICMBio, IBAMA, Furnas Centrais Elétricas – Empresa Eletrobras, AES Brasil Operações S.A., Grupo Especialista em Planejamento da Conservação (IUCN SSC CPSG Brasil), Sociedade para a Conservação das Aves do Brasil (SAVE Brasil), e da Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz” (ESALQ, Universidade de São Paulo), além de pesquisadores de diversas instituições, para juntos executarem ações previstas no PAN das Aves da Mata Atlântica para o aracuã-guarda-faca.
Entre as ações previstas pelo PAN, e de ação compartilhada entre os autores deste artigo, a primeira visa estimar o tamanho da população da espécie (ação 2.7), além da validação de um modelo preditivo da distribuição geográfica desse táxon (ação 2.12), pouco conhecido pela ciência (ICMBio, 2023). Ambas atividades têm por fim o planejamento territorial para ações concretas de conservação da espécie, seu habitat e, tendo como consequência, a melhoria ambiental da região noroeste do estado de São Paulo, uma das áreas com o maior déficit de vegetação nativa no Brasil (SOS Mata Atlântica, 2020).
Nesse sentido, os objetivos deste artigo são compilar os dados de programas que envolvem estudos do aracuã-guarda-faca e avaliar o seu sucesso da execução, bem como dos resultados obtidos, com o planejamento e interação de representantes de diferentes setores da sociedade. Além disso, relacionar o potencial da execução de ações, com resultados concretos, no auxílio da tomada de decisão para a conservação dessa espécie.
Material e Métodos
Histórico sobre o aracuã-guarda-faca Ortalis remota
No ano de 1927, o naturalista João Leonardo de Lima coletou um exemplar, depositado no Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (MZUSP11359), que mais tarde, em 1960, foi descrito por Olivério Pinto como subespécie do aracuã-pintado (Ortalis guttata (Spix, 1825)). A espécie permaneceu sem registros na natureza até 1996, quando Edwin Willis e Yoshika Oniki a registraram em Nova Granada e Barretos, noroeste do estado de São Paulo (Willis e Oniki, 2001). Por meio da plataforma WikiAves (www.wikiaves.com.br), vários registros dessa espécie começaram a aparecer, sendo o primeiro o registro de Dina Bessa (http://www.wikiaves.com.br/478781), reali-zado em 2011 (SAVE Brasil, 2023). A partir de então, foi publicado o artigo que reconhece o aracuã-guarda-faca (Figura 1) como uma espécie plena a partir de caracteres morfológicos (Ortalis remota; Silveira et al., 2017), dando início assim aos trabalhos de conservação da espécie e sua inclusão na lista das aves do Brasil (Pacheco et al., 2021).
Devido à sua recente aceitação como espé-cie plena, o aracuã-guarda-faca ainda necessita de estudos mais aprofundados em relação à sua biologia, possuindo apenas estudos iniciais, com ampla lacuna de conhecimento. A espécie habita a borda, o sub-bosque e o estrato médio da floresta estacional semidecidual (Moreira-Lima e Silveira, 2017), a uma altura média de 5,5 m acima do solo (Gussoni e Silva, 2021). Acredita-se que o aracuã-guarda-faca tenha sua dieta preferencialmente frugívora, assim como o aracuã-pintado (Telino-Júnior et al., 2005). Gussoni e Silva (2021) registraram indivíduos alimentando-se de frutos da embaúba (Cecropia pachystachya) e da goiabeira (Psidium guajava). É encontrada, preferencialmente, aos pares, podendo ser registrada em grupos de até cinco indivíduos (Gussoni e Silva, 2021). Na sua área de distribuição no interior de São Paulo, é popularmente conhecida como aracuã, guarda-faca ou jacuzinho (Gussoni e Silva, 2021). O Comitê Brasileiro de Registros Ornitológicos (Pacheco et al., 2021) reconhece o nome vernáculo aracuã-guarda-faca, motivo pelo qual seguimos sua nomenclatura.
A distribuição geográfica atual se concentra na região noroeste do estado de São Paulo (Silveira et al., 2017), onde é restrita a menos de 20 municípios (Gussoni e Silva, 2021), em uma área a aproximadamente 200 km de onde o holótipo foi coletado em 1927, no estado do Mato Grosso do Sul. Conhecer sua distribuição original seria algo impossível, devido às alterações da paisagem natural do noroeste paulista, cujas florestas nas quais habitavam foram historica-mente devastadas pela ocupação agropecuária, contando com uma colaboração das hidrelétricas que contribuíram para a redução das florestas ripárias, ambiente esse propício para ocorrência do aracuã-guarda-faca (Olmos, 2022). Contudo, conhecer sua distribuição atual é fundamental para que medidas para a conservação da espécie e mitigação de impactos sobre a sua distribuição sejam corretamente alocadas.
Modelo de distribuição da espécie
Após a redescoberta do aracuã-guarda-faca, a SAVE Brasil (BirdLife International no Brasil) deu início ao primeiro censo para determinar o tamanho populacional e a distribuição geográfica da espécie, assim como para obter dados sobre a sua história natural. As informações coletadas sobre o aracuã-guarda-faca culminaram na publicação de um artigo com dados sobre a distribuição, o tamanho dos grupos, comportamento de forrageamento, itens alimentares, poleiros preferenciais utilizados e reprodução (Gussoni e Silva, 2021). Após o primeiro ano de atividade (2018) com a espécie, financiado pela Fundação Grupo Boticário de Proteção à Natureza (1108_20172), a equipe da SAVE Brasil (COAG e MAGS) trabalharam com com os especialistas em modelagem do Grupo Especialista em Planejamento de Conservação – IUCN SSC CPSG Brasil e ESALQ/USP (AAAB e KMPMBF) para elaborar um Modelo de Distribuição de Espécies (MDE), seguindo o Processo de Modelagem Participativa (PMP) – desenvolvido por membros do CPSG Brasil (Ferraz et al., 2020), de modo a fornecer um modelo preditivo de distribuição potencial do aracuã-guarda-faca para priorizar as áreas de novas buscas e aperfeiçoar o conhecimento sobre as áreas de ocorrência da espécie e seu tamanho populacional.
A construção do PMP-MDE se baseia na teoria de nicho ecológico, segundo a qual é possível estimar a adequabilidade ambiental de um local à uma espécie com base em uma abordagem correlativa entre pontos de ocorrência e variáveis ambientais (Peterson et al., 2011). Ao receber as informações ambientais dos locais onde a espécie já foi registrada, o algoritmo identifica relações entre as variáveis e gera um mapa de adequabilidade ambiental, com valores de probabilidade associados à distribuição da espécie, que pode ser utilizado para diversos fins (Bovo et al., 2021; Ferraz et al., 2021). A condução do PMP-MDE tem como premissa a participação de especialistas na construção e na validação do modelo, em um processo interativo de construção, no qual ajustes são realizados mediante contribui-ções de especialistas da espécie e demais atores que participam do processo até que o modelo final seja aceito por consenso (considerado plausível) (Ferraz et al., 2020). O resultado é um modelo probabilístico com valores de pixel variando de 0 a 1, no qual 1 representa áreas com o máximo de adequabilidade ambiental para a espécie, e 0 representa áreas não adequadas a sua presença. A adequabilidade ambiental relaciona-se diretamente à probabilidade de presença da espécie. Portanto, quanto maior a adequabilidade ambiental, maior será a probabilidade de presença da espécie. O propósito da construção do PMP-MDE para o aracuã-guarda-faca foi entender quais variáveis explicam a distribuição da espécie e quais áreas são mais adequadas para otimizar os esforços de novas buscas.
O modelo foi construído com base nos únicos pontos disponíveis à época de presença conhecida da espécie (n = 53), e que inclui a localidade da primeira foto, obtidos ao longo de 2018 em 11 municípios do noroeste paulista (fornecidos por COAG e MAGS através do projeto da SAVE Brasil), e em variáveis ambientais (n =13), incluindo variáveis topográficas, climáticas, de uso e cobertura do solo e drenagem). Apenas os pontos recentes foram utilizados na modelagem devido ao uso de variáveis de uso e cobertura do solo, que possivelmente já sofreram alterações nos locais de registros históricos. O espaço geográfico definido para a modelagem foi limitado às áreas entre os rios Grande, Paraná, Tietê e Sapucaí. O algoritmo utilizado foi o Maxent (v.3.4.1) (Phillips e Dudik, 2008; Phillips et al. 2017a, 2017b). Para avaliar o desempenho do modelo, foi utilizado o AUC (Area Under the Curve; Fielding e Bell, 1997), cujos valores variam de 0 a 1 (Peterson et al., 2011). Além disso, o modelo foi aceito apenas após a validação pelos especialistas (COAG e MAGS), como preconizado pelo PMP-MDE (Ferraz et al., 2020). A área modelada foi dividida em quatro classes de adequabilidade ambiental: alta (0,75 a 1), média (0,5 a 0,75), baixa (0,25 a 0,5) e muito baixa (0 a 0,25). Informações mais detalhadas, como os parâmetros utilizados para a modelagem, estão disponíveis no Material Suplementar 1.
Monitoramento nas áreas de ocorrência da espécie
A redescoberta da espécie, os primeiros censos e a modelagem formaram um arcabouço para que outras instituições pudessem interagir de forma proativa e compartilhada, visando a conservação da espécie.
Assim, iniciou-se o projeto para a conservação do aracuã-guarda-faca, dentro do processo de licenciamento ambiental junto ao IBAMA/SP, dos seguintes empreendimentos hidrelétricos: UHE Marimbondo (Furnas Centrais Elétricas – Empresa Eletrobras – Programa de Monitoramento e Conservação da Fauna Terrestre, parte integrante da condicionante 2.1 da Licença de Operação nº 1036/2011 (1ª Retificação), processo 02001.004171/2004-65); e UHE Água Vermelha (AES Brasil – Subprograma de Conservação da Fauna Terrestre da Usina Hidrelétrica de Água Vermelha, para atendimento da Condicionante nº 2.5 da Licença de Operação n. 345/2003 – 1ª Renovação).
No âmbito do licenciamento ambiental dessas UHEs, o Núcleo de Licenciamento Ambiental do IBAMA/SP buscou dentro de uma das etapas dos programas de monitoramento da fauna dos dois empreendimentos, focar as atividades nas espécies de aves que são consideradas criticamente ameaçadas de extinção no estado de São Paulo, de acordo com o Decreto n. 63.853, de 27 de novembro de 2018.
Os esforços, conduzidos pelo Núcleo de Licenciamento Ambiental do IBAMA/SP (VKL) e os responsáveis pelos programas por Furnas Centrais Elétricas – Empresa Eletrobras (ARL) e AES Brasil (GF), para o atendimento das condicionantes ambientais de ambos os empreendimentos, teve como princípio contribuir para o atendimento das ações 2.7 (estimar a população da espécie) e 2.12 (validação de um modelo preditivo da distribuição desse táxon) do PAN das Aves da Mata Atlântica (ICMBio, 2023).
A integração das instituições e iniciativas para a conservação do aracuã-guarda-faca
Na elaboração do planejamento por parte do IBAMA, Furnas Centrais Elétricas – Empresa Eletrobras e AES Brasil, surgiu a possibilidade de trabalhar com a SAVE Brasil, pelo seu envolvimento em projetos de conservação de aves ameaçadas de extinção, incluindo o mutum-de-penacho (Crax fasciolata Spix, 1825) e o aracuã-guarda-faca.
Como a SAVE Brasil já desenvolvia ações de conservação na região, AES Brasil e SAVE Brasil estabeleceram um contrato para desenvolver o Projeto Mutum-de-penacho, com ações previstas para o aracuã-guarda-faca. Essa parceria foi ampliada com a colaboração do Programa de Conservação do mutum-de-penacho (Crax fasciolata) e do aracuã-guarda-faca (Ortalis remota) executado paralelamente por Furnas Centrais Elétricas – Empresa Eletrobras, no entorno da UHE Marimbondo.
Furnas Centrais Elétricas – Empresa Eletrobras e a AES vem desenvolvendo desde 2019 os programas que envolvem o diagnóstico do aracuã-guarda-faca nas áreas de influência de seus respectivos reservatórios, em conjunto com a SAVE Brasil e empresas de consultoria especializadas, de forma a ampliar a malha amostral na região noroeste de São Paulo, tomando como base o modelo elaborado pelo CPSG Brasil e ESALQ/USP em conjunto com a SAVE Brasil.
Dentro desse contexto, tomando como base a modelagem supracitada (que indicou as áreas com maior adequabilidade ambiental para a presença da espécie na região) foram realizadas campanhas de campo coordenadas pela SAVE Brasil, AES Brasil e Furnas Centrais Elétricas – Empresa Eletrobras, na área do entorno dos reservatórios já citados, além de outras áreas amostradas em campanhas de busca do aracuã-guarda-faca na região entre 2019 e 2021.
Para realização das campanhas, foram levantados os pontos com maior adequabilidade ambiental (valores ≥ 75% de probabilidade) indicados pelo MDE, e as equipes se dirigiram aos locais, inclusive durante o período reprodutivo da espécie, de forma a aumentar a chance de resposta à amostragem com adoção de playback controlado, reproduzindo a vocalização por cinco minutos e aguardando por mais cinco minutos uma possível resposta dos indivíduos do aracuã-guarda-faca (Marion et al., 1981; Gussoni e Silva, 2021). A gravação foi utilizada para facilitar buscas futuras por outros pesquisadores, além de facilitar a detecção da espécie, muito secretiva na maior parte do tempo. A gravação utilizada está depositada na plataforma online de ciência cidadã WikiAves (www.wikiaves.com.br) sob o número WA1473986 e foi amplificada para realização dos playbacks.
Estratégias para conservação do aracuã-guarda-faca no noroeste paulista
Os resultados gerados pelos primeiros censos, a MDE e as informações subsequentes, frutos da parceria entre as instituições, gerou dados suficientes para a realização de um estudo priorizando as áreas necessárias para a conservação do aracuã-guarda-faca.
O trabalho, fruto da dissertação de mestrado de RC, orientado por Alexandre Uezu, Clinton Neil Jenkins e COAG, junto à instituição IPÊ (Instituto de Pesquisas Ecológicas), compreendeu 77 municípios do noroeste paulista e abrangeu os registros dos censos e buscas realizados previamente pela SAVE Brasil. Nessa região foram adotadas amostras correspondentes às sub-bacias hidrográficas de terceira ordem, definidas a partir de modelos digitais de elevação por imagens SRTM – Shuttle Radar Topography Mission (USGS, 2020).
Na tentativa de identificar fatores da paisagem que pudessem influenciar na ocorrên-cia da espécie e impulsionar a escolha de áreas para conservação, foram avaliadas algumas variáveis ambientais, tais como o porte dos recursos hídricos (usando USGS, 2020; detalhes em Cassani, 2020), a cobertura de uso do solo (Projeto MapBiomas, 2020) e o índice de conectividade (Conefor 2.6; Saura e Pascual-Horta, 2007; Saura e Torné, 2009). A partir desses dados foram realizadas análises estatísticas, inicialmente uma correlação entre as variáveis explicativas e a ocorrência da espécie, seguida pela Análise de Componentes Principais (PCA) das variáveis de uso antrópico, e finalmente a seleção de modelos AIC (Critério de Informação de Akaike) para avaliar os modelos que melhor explicam a relação entre a ocorrência da espécie e as variáveis da paisagem (mais informações sobre os modelos e suas variáveis estão no Material Suplementar 2).
As áreas prioritárias de conservação do aracuã-guarda-faca foram definidas a priori através do Mínimo Polígono Convexo (MPC), restringindo a área de estudo pelos limites do menor polígono possível e abrangendo todos os registros de ocorrência comprovados, interligando os pontos mais externos (Mohr, 1947). A partir dessa área selecionada foi avaliado o IIC (Índice Integral de Conectividade; Saura e Pascual-Horta, 2007), as áreas prioritárias para conservação da biodiversidade do bioma Cerrado e o acúmulo dos pontos de registro da espécie e outras espécies ameaçadas da região.
Considerando de extrema importância conectar as populações conhecidas da espécie, assim como as áreas prioritárias indicadas, foram avaliados os caminhos mais viáveis para estabelecer esses corredores ecológicos. Para tanto, foram considerados os critérios de resistência, quais sejam, a distância entre as APPs, a importância da bacia para a conectividade e o tamanho das propriedades rurais. Também foram calculados os déficits de vegetação nativa nas APPs das áreas indicadas à conservação da espécie e nos corredores ecológicos e estimado o custo de restauração utilizando valores apresentados por Benini et al. (2017).
Resultados e Discussão
Modelo de distribuição da espécie (MDE)
O MDE apresentou ótimo desempenho estatístico (AUC = 0,946 ± 0,025; Figura 2), apontando apenas 1,05% (59.694 ha) da área modelada com alta adequabilidade ambiental (> 0,75) para a espécie. As variáveis mais importantes para o modelo foram isotermalidade (contribuição de 47,9%), distância de água (16,1%) e uso e cobertura do solo (9,9%) (Figura 3). A isotermalidade (i.e. relação entre as variações de temperatura ao longo do dia e ao longo do ano) influencia a distribuição da espécie em uma escala mais ampla, possivelmente como um dos fatores que limita a distribuição da espécie ao noroeste paulista. A probabilidade de presença diminui à medida que a distância à água aumenta, o que reforça a relação da presença da espécie com a área ripária, em muitos casos a única formação florestal restante na paisagem. Isso também se confirma com a forte relação entre probabilidade de presença da espécie e formação florestal (~80% de probabilidade). Entretanto, a classe de mosaico de agricultura e pastagem também apresentou alta relação com a probabilidade de presença da espécie (~60%), possivelmente por ser a matriz adjacente às vegetações florestais ripárias.
Monitoramento nas áreas de ocorrência da espécie
Durante as atividades em campo para executar os censos populacionais, juntamente com a validação da modelagem e buscas por novas áreas de ocorrência, entre os anos de 2018 e 2021, foram realizadas visitas em 28 municípios da região noroeste do estado de São Paulo. As áreas foram indicadas pelo Modelo de Distribuição de Espécie, seguindo a adequabilidade ambiental e a logística necessária, resultando no registro da espécie em 13 desses municípios. Embora não tenha sido usada nenhuma plataforma de ciência cidadã para a seleção das áreas, é válido mencionar que atualmente existem registros do aracuã-guarda-faca para 21 municípios no estado de São Paulo. À época da seleção das áreas, o número de municípios com registros na plataforma era menor que os de conhecimento da equipe. Esses esforços conjuntos entre SAVE Brasil/AES Brasil e Furnas Centrais Elétricas – Empresa Eletrobras permitiram os cálculos para a estimativa populacional da espécie, composta por 266 indivíduos em abril de 2022 (Figura 4). No total, foram executadas 12 campanhas de campo, totalizando 891 pontos amostrados, dos quais 1,68% estão fora da área modelada (no estado de Minas Gerais); 24,13% em áreas de adequabilidade ambiental muito baixa; 22,33% em áreas de baixa adequabilidade ambiental; 16,16% com média adequabilidade e 35,69% das amostragens foram em áreas com alta adequabilidade ambiental para a espécie, conforme modelo.
A validação do modelo com os pontos de presença do aracuã-guarda-faca obtidos após a modelagem (n = 104) mostra que 12,5% dos pixels com novos registros estão em áreas indicadas como sendo de muito baixa adequabilidade; 32,7% em pixels com baixa adequabilidade, 26% com média adequabilidade e 28,8% com alta adequabilidade. O modelo foi capaz de prever uma parte dos novos registros, embora alguns desses novos registros tenham ocorrido em áreas avaliadas como de reduzida adequabilidade ambiental à espécie. Esse é um resultado esperado, visto que o aracuã-guarda-faca ainda possui sua distribuição geográfica pouco conhecida, com novas áreas sendo encontradas e expandindo as áreas de presença conhecidas. Esses dados mostram que o modelo pode e deve ser atualizado no futuro com as novas informações, para que esteja mais ajustado ao conhecimento da espécie e possa ser utilizado com maior sucesso para a conservação.
De forma geral, a espécie ocupa os remanescentes florestais do noroeste paulista e possui uma forte relação com os corpos d ‘água. A distância média entre os pontos onde a espécie foi registrada e o corpo d’água mais próximo foi de 100 m, sendo que em apenas 14% dos registros (n = 22) a espécie estava a mais de 200 m da rede hídrica.
O maior tamanho de grupo registrado foi de dez indivíduos, o que altera a compreensão quanto aos tamanhos dos grupos em relação aos dados de 2018, quando a maioria dos registros foram de pares, com um tamanho máximo de grupo de cinco indivíduos (Gussoni e Silva, 2021). Os resultados encontrados são similares quando aos de outras espécies de aracuã do gênero Ortalis (Schmitz-Ornés, 1998; Roncancio-Duque et al., 2023), e junto com a forte vocalização, fazem com que a espécie seja bem detectada.
O longo período de devastação pelo qual o noroeste paulista passou resulta atualmente num cenário de escassez de vegetação nativa na região, com predomínio de pastagens e plantios de cana-de-açúcar (Projeto MapBiomas, 2023). Embora tenha havido um aumento de 13% na quantidade de área nativa entre 1996 (ano do último registro antes da redescoberta em 2011) e 2021, a porcentagem de área nativa ainda é muito baixa na área modelada (10,7%; Projeto MapBiomas, 2023). Mesmo assim, ao contrário do esperado, as variáveis da paisagem não explicaram a ocorrência da espécie e novos estudos são necessários para compreender esse resultado. Uma possível explicação é o fato do modelo ter sido construído com a resolução espacial disponível de 1 km, o que faz com que informações espaciais locais sejam diluídas. Uma vez que as áreas de vegetação nativa remanescentes são principalmente compostas de estreitas faixas de mata ciliar circundada por áreas agrícolas, o uso do solo predominante no pixel (1 km), e consequentemente inserido no modelo, pode ser áreas agrícolas.
O investimento realizado com a logística nessas 12 campanhas de campo pelas instituições participantes foi de aproximadamente R$ 30 mil, contemplando 70 dias de campo para combustí-vel, hospedagem e alimentação para dois profissionais de campo. Os valores referentes aos honorários profissionais envolvidos, além também de custos institucionais envolvidos, incluindo camionetas 4x4 próprias das instituições não foram contabilizados. Esses valores são apresentados como uma forma de exemplificar o custo das ações de campo para a validação da modelagem de espécies e o censo populacional da espécie.
Estratégias para conservação do aracuã-guarda-faca no noroeste paulista
Com base nos dados do primeiro levantamento realizado pela SAVE Brasil e com foco na conservação da espécie, foi proposta uma área principal em trecho médio da bacia do rio Turvo (98.000 ha) que reúne uma concentração maior de registros do aracuã-guarda-faca (64 ind.), índices de conectividade mais elevados e coincidente a uma área prioritária com registro de outras 16 espécies de aves ameaçadas em nível estadual (Decreto no. 63.853, 2018). Foram propostas mais quatro áreas secundárias, que abrangem populações menores da espécie, totalizando quase 15 mil ha. Para ampliar o hábitat (florestas ripárias) nas áreas primárias e secundárias do aracuã-guarda-faca, será necessário restaurar aproximadamente 3.800 ha das APPs, que envolvem 1.895 propriedades rurais, a um custo total de cerca de R$ 84 milhões (aproximadamente R$ 44 mil reais por propriedade).
Para conectar essas áreas de conservação foram propostos quatro corredores ecológicos, abrangendo 4.368 propriedades rurais, onde a restauração se faz necessária em cerca de 340 ha a um custo total de R$ 7,5 milhões (um pouco mais de R$ 1.700,00 por propriedade). O elevado déficit das APPs e reservas legais na região de estudo oferta oportunidades estratégicas para regularização dos imóveis rurais, conforme o Código Florestal (Lei Federal n. 12.651/2012), ao mesmo tempo que amplia a provisão de serviços ecossistêmicos, principalmente dos recursos hídricos, sendo aliada da produtividade agrícola e de energia aos interesses ambientais de conservação.
As áreas primárias e secundárias relevantes à conservação do aracuã-guarda-faca foram sobrepostas com os principais corredores ecológicos entre elas, sendo adicionados os pontos de registros mais recentes (Figura 5). As localizações recentes foram coletadas na parceria não formalizada entre SAVE-AES-FURNAS entre os anos de 2019 e 2021. Os registros recentes corroboram e fortalecem as áreas indicadas como prioritárias para ações de conservação do aracuã-guarda-faca, assim como os corredores que também apresentaram registros da espécie (Figura 5).
Conclusão
Este artigo evidencia a importância que diferentes instituições podem desempenhar, quando coordenadas pelas ações vinculadas aos planos de ação nacional, de forma a executar estratégias específicas de conservação para as espécies brasileiras ameaçadas de extinção.
A construção de um Modelo de Distribuição de Espécies auxiliou nas buscas de novos indivíduos em áreas com registros ainda não conhecidos para a espécie, e, juntamente com os novos registros, confirmou a forte relação entre o aracuã-guarda-faca e as mata ripárias ao longo dos cursos d’água. Com os resultados das buscas, mais registros estão disponíveis para uma atualização do modelo para que o trabalho de buscas continue sendo feito. Foram contabilizados um total de 266 indivíduos, valor não definitivo e que pode ser mais refinado com estudos futuros. A partir dos trabalhos aqui apresentados, há um maior embasamento para o planejamento da conservação da espécie, visto que informações sobre a biologia, distribuição geográfica e sua relação com aspectos da paisagem passam a ter maior compreensão.
Levanta-se ainda a reflexão quanto à efetividade dos programas de fauna normalmente apresentados aos órgãos ambientais para o atendimento às condicionantes do licenciamento de empreendimentos como UHEs, os quais em geral se limitam a contínuos inventários faunísticos. Em contraponto ao acima exposto, o presente trabalho apresenta uma outra diretriz, revelando que programas direcionados ao monitoramento de algumas espécies bioindi-cadoras/ameaçadas, principalmente indicadas nos PANs, podem trazer subsídios mais robustos para a realização de um efetivo manejo e conservação dessas espécies e da fauna local nas áreas de influência desses empreendimentos, resultando em proposições mais assertivas, efetivas e, por vezes, menos onerosas ao empreendedor.
Revela-se, por fim, de grande importância a aproximação entre as equipes técnicas dos empreendimentos e aquelas dos órgãos ambientais licenciadores, para o adequado alinhamento na formulação dos programas ambientais, e o envolvimento do conhecimento, ou mesmo das próprias instituições focadas na conservação ambiental, e academia na construção e/ou execução das propostas, devendo-se sempre fomentar essas iniciativas, o que nesse caso gerou uma articulação sinergética, na finalidade comum da conservação.
Agradecimentos
À Fundação Grupo Boticário de Proteção à Natureza (١١٠٨_٢٠١٧٢), ao Ministério do Meio Ambiente (via Emenda Parlamentar) e às instituições parceiras na realização desse trabalho. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento ٠٠١.
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Figura 1 – Aracuã-guarda-faca (Ortalis remota). ⓒ Marco Silva, Macaulay Library ML365248101.
Figura 2 – Modelo de Distribuição de Espécies (MDE) do aracuã-guarda-faca, indicando áreas com baixa, média e alta adequabilidade ambiental.
Figura 3 – Curvas respostas das variáveis mais importantes para o modelo do aracuã-guarda-faca, mostrando a relação entre cada variável e a probabilidade de presença da espécie: a) isotermalidade; b) distância de água; e c) uso e cobertura do solo.
Figura 4 – Áreas com busca (pontos vermelhos) e com registros (pontos pretos) do aracuã-guarda-faca. O mapa também indica as duas UHE citadas neste trabalho: Água Vermelha e Marimbondo, e destaca os dois principais rios na área de ocorrência da espécie: o Rio Grande e o Rio Turvo.
Figura 5 – Mapa das áreas propostas para a conservação do aracuã-guarda-faca. Os pontos na cor preta se referem ao levantamento realizado pela SAVE Brasil no ano de 2018, que foram utilizados para a análise que propôs as áreas para a conservação da espécie. Já os pontos em azul, se referem aos dados obtidos por FURNAS, AES Brasil e SAVE Brasil entre os anos de 2019 e 2021, que são posteriores à análise.
Biodiversidade Brasileira – BioBrasil.
Fluxo Contínuo e Seção Temática:
Planos de Ação Nacional para Conservação de Espécies Ameaçadas de Extinção
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http://www.icmbio.gov.br/revistaeletronica/index.php/BioBR
Biodiversidade Brasileira é uma publicação eletrônica científica do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) que tem como objetivo fomentar a discussão e a disseminação de experiências em conservação e manejo, com foco em unidades de conservação e espécies ameaçadas.
ISSN: 2236-2886