Áreas e sítios importantes para a conservação de morcegos – AICOMs e SICOMs como estratégias para a conservação
Eleonora Trajano1*
https://orcid.org/0000-0001-6232-0470
* Contato principal
Shirley Seixas Pereira da Silva2
https://orcid.org/0000-0002-6523-1331
1 Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo/IBUSP, São Paulo/SP, Brasil. <etrajano@usp.br>.
2 Instituto Resgatando o Verde/IRV, Rio de Janeiro/RJ, Brasil. <batshirley@gmail.com>.
RESUMO – Áreas e Sítios para a Conservação de Morcegos (AICOMs e SICOMs), certificadas pela Red Latinoamericana y del Caribe para la Conservación de los Murciélagos (RELCOM), constituem importante estratégia para a proteção de quirópteros e da fauna em geral, pois sua identificação baseia-se em um conjunto robusto de critérios faunísticos (diversidade taxonômica) e ecológicos (distribuição, endemismo, raridade, vulnerabilidade, dependência de certos tipos de abrigo, importância para o funcionamento dos ecossistemas e graus de ameaça), que podem ser igualmente aplicados a vários outros táxons. Porém, sua eficácia como estratégia de conservação depende do reconhecimento por parte das autoridades ambientais responsáveis pela elaboração e aplicação da legislação ambiental, incluindo a criação de unidades de conservação. Apresentamos aqui as seis AICOMs e as quatro SICOMs brasileiras propostas pelo Programa de Conservação de Morcegos no Brasil (PCMBrasil) e certificadas pela RELCOM até o presente. Essas áreas e sítios localizam-se em diferentes biomas brasileiros, principalmente Amazônia, Caatinga e Mata Atlântica, e estão sujeitas a diversos impactos, com destaque para a perda de habitat, perturbação ou destruição de abrigos, expansão de áreas urbanas e conflitos morcegos-humanos. Parte das AICOMs está localizada em unidades de conservação, como Parques Nacionais (PARNAs), Áreas de Proteção Ambiental (APAs) e Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPNs); enquanto as SICOMs incluem cavernas e pontes sob as quais colônias particularmente numerosas se abrigam. Concluindo, propomos que os órgãos ambientais brasileiros reconheçam a importância de estratégias como a implementação de AICOMs e SICOMs para a conservação de ecossistemas inteiros, promovendo e apoiando estudos que forneçam dados científicos para a identificação dessas áreas e utilizando-os como base para a criação de áreas protegidas.
Palavras-chave: Chiroptera; preservação; Programa de Conservação de Morcegos no Brasil.
Important areas and sites for bat conservation – AICOMs and SICOMs as strategies for conservation
ABSTRACT – Important Areas and Sites for Bat Conservation (AICOMs and SICOMs), recognized by the Red Latinoamericana y del Caribe para la Conservación de los Murciélagos (RELCOM), are relevant strategies for conservation of bats and whole communities as they are identified based on a set of scientifically sound criteria. These criteria can be both faunistic (taxonomic diversity) and ecological (distribution, endemism, rarity, vulnerability, dependence on certain types of shelter, importance for ecosystem functioning, and degrees of menace), which may also be applied to several other taxa. However, their effectiveness relies partly on the acceptance by the environmental authorities responsible for making and applying the legislation, including the creation of conservation units. Herein, we present the six AICOMs and four SICOMs so far proposed by the Brazilian Program for Bat Conservation (PCMBrasil) and certified by RELCOM. They are situated in different biomes, especially the Amazon, Caatinga, and Atlantic Forest, and subject to diverse impacts such as habitat loss, disturbance and destruction of shelters, urban expansion, and human-bat conflicts. Part of these areas are protected in Parks (Parnas), Areas of Environmental Protection (APAs) and Natural Patrimony Private Reserves (RPPNs). The SICOMs include caves and bridges where exceptionally large bat colonies occur. We propose that the Brazilian environmental authorities recognize the strategic importance of AICOMs and SICOMs for ecosystem protection, promoting studies aiming the identification of such areas and using them as support for creating conservation units.
Keywords: Chiroptera; bat protection; Brazilian Program for Bat Conservation.
Áreas y sitios importantes para la conservación de los murciélagos – AICOM y SICOM como estrategias para la conservación
Resumen
Las Áreas y Sitios para la Conservación de Murciélagos (AICOMs y SICOMs), certificados por la Red Latinoamericana y del Caribe para la Conservación de los Murciélagos (RELCOM), constituyen una estrategia importante para la protección de los murciélagos y ecosistemas, ya que su identificación se basa en un conjunto robusto de criterios faunísticos (diversidad taxonómica) y ecológicos (distribución, endemismo, rareza, vulnerabilidad, dependencia de determinados tipos de refugio, importancia para el funcionamiento de los ecosistemas, grados de amenaza), que también pueden aplicarse a varios otros taxones. Sin embargo, su efectividad depende en gran medida del reconocimiento por parte de las autoridades ambientales responsables por la elaboración y aplicación de la legislación ambiental, incluyendo la creación de unidades de conservación. Presentamos aquí las seis AICOMs y los cuatro SICOMs brasileños propuestos por el Programa Brasileño para la Conservación de Murciélagos (PCMBrasil) y certificados por RELCOM hasta el momento. Estas áreas y sitios están ubicados en diferentes biomas brasileños, principalmente en la Amazonia, Caatinga y Mata Atlántica, y están sujetos a diferentes impactos, con énfasis en la pérdida de hábitat, perturbación o destrucción de refugios, expansión de áreas urbanas y conflictos entre murciélagos y humanos. Parte de estas áreas están ubicadas en unidades de conservación, como Parques (Parnas), Áreas de Protección Ambiental (APAs) y Reservas Privadas de Patrimonio Natural (RPPNs). Los SICOM incluyen cuevas y puentes, bajo las cuales se refugian colonias particularmente numerosas. En conclusión, proponemos que las agencias ambientales brasileñas reconozcan la importancia de estrategias como AICOMs y SICOMs para la conservación de ecosistemas completos, promoviendo y apoyando estudios que proporcionen la base científica para identificar estas áreas y utilizarlas como base para la creación de áreas protegidas.
Palabras clave: Quirópteros; preservación; Programa de Conservación de Murciélagos en Brasil.
Recebido em 15/05/2023 – Aceito em 07/08/2024
Como citar:
Trajano E, Silva SSP. Áreas e sítios importantes para a conservação de morcegos – AICOMs e SICOMs como estratégias para a conservação. Biodivers. Bras. [Internet]. 2024; 14(4): 56-67. doi: 10.37002/biodiversidadebrasileira.v14i4.2454
Introdução
Os quirópteros são caracterizados pela grande diversidade funcional e ecológica nas regiões tropicais, sobretudo na Região Neotropical, onde apresentam disparidade de táticas alimentares e de dietas [1]. Como resultado de sua abundância e da diversidade de modos de vida, morcegos prestam serviços ecossistêmicos relevantes e variados, com alto valor econômico [2][3][4]. Nas últimas décadas, esse tema vem sendo objeto de várias publicações visando monetizar tais serviços, principalmente o controle de pragas por morcegos insetívoros (e.g., [5][6][7][8][9[10]). A importância dos morcegos nectarívoros para a polinização já é bem conhecida [2][11] incluindo a relação com plantas de grande valor econômico como o agave, matéria-prima para a produção de tequila no México [12]. Morcegos podem voar distâncias superiores a 30 quilômetros durante uma noite entre áreas de alimentação, proporcionando a polinização e dispersão de sementes a longas distâncias. Como esses animais defecam em voo, eles geram uma “chuva” de sementes, que é mais eficiente na regeneração de vegetação que a plantação manual de mudas [11][13].
Por outro lado, a maioria dos morcegos é altamente vulnerável a impactos, o que vem sendo tratado em publicações, incluindo revisões e coletâneas de artigos em livros (e.g., [14][15][16][17][18][19]). De acordo com os autores, as mais sérias ameaças são aquelas que afetam a fauna em geral: a destruição, fragmentação e degradação da qualidade do habitat por desmatamento, mineração e poluição; a urbanização (que afeta diferentemente as espécies, favorecendo os sinantrópicos); a caça; as mudanças climáticas, ampliando extremos climáticos; os atropelamentos e as turbinas eólicas. Outros impactos, tais como a destruição de abrigos e perturbações diretas sobre as colônias, sobretudo em cavernas, têm consequências que afetam particularmente os morcegos [18]. No entanto, para alguns grupos de morcegos, sobretudo os Molossidae, a urbanização cria abrigos representados por casas, prédios e pontes.
A imagem negativa dos morcegos em geral, gera preconceitos que ameaçam esses animais, e se torna um grave problema adicional. Em virtude do medo e repulsa, morcegos são eliminados maciçamente e de forma indiscriminada pelo uso de venenos, oclusão dos abrigos, remoção manual durante o dia, e outros procedimentos nocivos aos animais.
Tais impactos têm consequências agravadas no caso dos morcegos devido ao ciclo de vida que tende ao K no continuum r-K. Esses animais apresentam reprodução infrequente, gestação longa e prole reduzida. A prole nasce em estágio ontogenético relativamente avançado e tem alta longevidade relativa ao tamanho (em oposição a reprodução frequente com proles numerosas, crescimento rápido e baixa longevidade, típicos de r-estrategistas como roedores), resultando em lento turnover populacional [20]. Isso reduz consideravelmente a capacidade de reposição de perdas causadas por impactos antrópicos.
Tendo em vista os impactos mencionados que incidem sobre a quiropterofauna, durante a 14th International Bat Research Conference (IBRC), realizada no México em agosto de 2007, especialistas do México, Guatemala, Costa Rica, Bolívia e Brasil firmaram um acordo estabelecendo metas comuns de longo prazo visando a proteção e conservação de morcegos de toda a América Latina e Caribe. Nessa ocasião, foi fundada a Rede Latino-Americana para a Conservação de Morcegos (RELCOM), uma entidade civil de natureza confederativa que agrega os Programas de Conservação de Morcegos (PCMs). Atualmente, a RELCOM reúne 25 países, com 23 PCMs organizados, incluindo o Programa para Conservação dos Morcegos do Brasil (PCMBrasil).
A RELCOM realiza uma ampla gama de atividades, tais como: reuniões técnico-científicas, workshops, cursos, palestras, elaboração de material didático e exposições sobre morcegos, visando gerar uma imagem positiva dos morcegos junto à população em geral [21].
Entre 2007 e 2012, o PCMBrasil permaneceu pouco ativo e limitado por falta de divulgação e comunicação. Em abril de 2013, por ocasião do VII Encontro para o Estudo de Quirópteros (EBEQ), em Brasília/DF, o PCMBrasil foi revitalizado e seus participantes assumiram os objetivos e ações da RELCOM no Brasil, incluindo a proposição de Áreas de Interesse para Conservação dos Morcegos (AICOMs) e de Sítios de Interesse para Conservação dos Morcegos (SICOMs). A contribuição para a biodiversidade geral, sua importância para o funcio-namento de ecossistemas e, consequentemente, os valiosos serviços ecossistêmicos prestados pelos morcegos justificam esforços para sua preservação. As ameaças ambientais prementes sobre esses animais tornam urgentes novas estratégias e planos de ação, assim como a consolidação dos já existentes, cuja eficácia tenha sido demonstrada. Dessa forma o presente artigo tem por objetivos: 1. apresentar ao público geral e promover junto às autoridades ambientais as AICOMs e SICOMs como importante estratégia para a proteção de comunidades de morcegos e para a conservação dos ecossistemas relacionados a eles; 2. discutir os critérios utilizados para o reconhecimento dessas áreas e sítios, os quais podem ser igualmente aplicados a outros táxons; e 3. recomendar o reconhecimento de AICOMs e SICOMs pelas autoridades ambientais brasileiras e a inserção dessas áreas e sítios nas políticas ambientais do país.
AICOMs e SICOMs: critérios para reconhecimento e certificação
Uma importante estratégia para a conservação dos morcegos neotropicais é a certificação pela RELCOM de AICOMs e SICOMs. Tal tática visa o reconhecimento de áreas e locais prioritários para ações de proteção à quiropterofauna, incluindo conservação, educação e pesquisa pelos atores envolvidos: pesquisadores, população local e regional, governo local, regional e nacional, ONGs e outros. AICOMs e SICOMs são propostas e justificadas pelos PCMs nacionais [1], por meio de formulário, conforme Diretrizes para Proposição de AICOMs e SICOMs (Anexo 1).
AICOMs e SICOMs diferem apenas pela escala espacial. As primeiras cobrem áreas de extensão suficiente para que populações de uma ou várias espécies desenvolvam seus processos vitais de modo a garantir sua permanência no tempo. As segundas são locais pontuais, como abrigos (cavernas e construções humanas como casas, túneis e pontes), corpos d’água e áreas de forrageio importantes para populações de interesse para a conservação. Todo critério biológico de ampla aplicação carrega certo grau de subjetividade, a começar pelo problema do estado da arte da disciplina, que normalmente difere entre regiões. Entra aqui a experiência do pesqui-sador, referida mais abaixo. A questão do tamanho da área é relativa, dependente de escala geográfica. SICOM é local, AICOM é regional, abrigando populações. De modo geral, SICOM abriga parte de populações – mas pontes e certas cavernas podem abrigar populações inteiras.
Para sua certificação, essas áreas e sítios devem enquadrar-se em um ou mais dos seguintes critérios (https://www.relcomlatinoamerica.net/¿qué-hacemos/conservacion/aicoms-sicoms.html – Anexo 1) (tradução livre):
Critério 1: Área ou sítio com espécies de morcegos de interesse para a conservação nacional ou regional. Tais espécies incluem aquelas constantes de Listas Vermelhas de espécies ameaçadas ou vulneráveis; espécies endêmicas ou com distribuição pequena; migratórias; raras ou com dados insuficientes; com papel importante para o funcionamento ecossistêmico ou populações no limite da distribuição da espécie.
Critério 2: Área ou sítio com abrigos para uma ou mais espécies de morcegos de interesse para a conservação. Os abrigos podem ser utilizados permanente ou sazonalmente; ou durante parte significativa do ciclo de vida como no caso de refúgios de colônias maternidade ou locais de agregação durante migração (sistemas de cavernas, construções antrópicas, entre outros).
Critério 3: Área ou sítio com alta riqueza de espé-cies, independentemente do grau de ameaça.
Note-se que, com poucas exceções (e.g. colônias maternidade), esses critérios podem ser igualmente aplicados a outros táxons.
A aplicação dos critérios depende da experiência dos pesquisadores proponentes, que sejam capacitados a inserir a área ou sítio proposto em um contexto maior, dentro do estado da arte da disciplina. O critério 3 em particular implica um certo grau de relatividade.
AICOMs e SICOMs brasileiras: localização, espécies de interesse, e impactos ambientais
Segundo [1], foram certificadas 201 áreas e sítios de importância distribuídos por 21 países, sendo 151 AICOMs e cinquenta SICOMs, com ênfase nos países da América Central e Caribe (66 áreas e sítios), México (31) e Argentina (23). A seguir, Bolívia e Porto Rico com dezesseis em cada, Equador com quatorze, e Brasil e Colômbia com dez em cada.
A AICOM Alto Ribeira e Alto Paranapanema, no Estado de São Paulo, foi a primeira AICOM proposta no Brasil e certificada em fevereiro de 2015. A partir de então, até dezembro de 2022, foram reconhecidas pela RELCOM outras cinco AICOMs e quatro SICOMs em diferentes biomas brasileiros, principalmente Amazônia, Caatinga e Mata Atlântica, as quais abrigam um expressivo número de espécies de morcegos raras, vulneráveis e ameaçadas (Tabela 1, Figuras 1 a 3).
As AICOMs e SICOMs brasileiras têm em comum a alta riqueza de espécies em relação à extensão da área e a presença de abrigos em rocha importantes para muitos morcegos. Além disso, compartilham espécies em Listas Vermelhas, sejam da IUCN, do Brasil e/ou do Estado em que se localizam, ou pelo menos de interesse para conservação em vista de sua raridade; grau de endemismo; fragilidade ecológica e comportamental; e forte preferência por abrigos em rochas (menos abundantes e mais dispersos que aqueles na vegetação). Parte dessas AICOMs e SICOMs estão incluídas em áreas protegidas, como Parques, APAs e RPPNs (Figura 2), atingindo riqueza de espécies mais alta que em áreas maiores [22].
As SICOMs compreendem duas cavernas e duas construções antrópicas. As cavernas localizam-se em áreas cársticas (carbonáticas ou areníticas) relativamente pequenas e isoladas, onde morcegos litófilos (que usam abrigos em rocha) tendem a se concentrar [19]. As construções tratam-se de pontes em vão livre, rampas e patamares ou apoiadas em aterros formados por gabiões que deixam espaços entre os blocos, onde molossídeos e noctilinídeos amazônicos formam colônias imensas, como as observadas nos sítios Ponte de Palmas dos Morcegos e Cais do Porto de Marabá, respectivamente (Tabela 1). O uso de ponte por colônia imensa de molossídeos, com ca. 750.000 Tadarida brasiliensis, foi documentado no Texas [23].
Note-se que algumas espécies insetívoras podem formar colônias com centenas de milhares a milhões de indivíduos em cavernas, como Tadarida brasiliensis (Molossidae) no Texas, resultando nas maiores concentrações conhecidas de vertebrados [24][25]. No entanto, molossídeos não usam regularmente cavernas no Brasil [19], de modo que as SICOMs Ponte de Palmas e Cais do Porto de Marabá são particularmente importantes para aquelas duas espécies na Amazônia.
Ameaças comuns a essas AICOMs e SICOMs incluem a perda de habitat e a perturbação ou destruição de abrigos, seguidas da expansão de áreas urbanas (Tabela 1). Ameaças emergentes incluem a instalação de usinas eólicas, com impactos sobre morcegos e aves cujas consequências ainda não estão plenamente equacionadas [26].
Conflitos morcegos-humanos são comuns, com frequentes ataques de humanos aos morcegos e seus abrigos, causados pela superstição, medo e desinformação, o que demonstra a necessidade de ações visando à proteção desses animais, através da desmistificação e do manejo. Ataques indiscrimi-nados são desencadeados pelo simples encontro acidental de morcegos; pelo desconforto causado pela instalação de colônias em construções humanas (em grande parte devido à retração do habitat natural pela expansão de atividades antrópicas), e devido aos prejuízos econômicos eventualmente causados por uma única espécie: o hematófago comum, Desmodus rotundus. AICOMs e SICOMs podem se constituir em locais privilegiados para divulgação e educação.
Cinco AICOMs e uma SICOM estão dentro dos limites de áreas protegidas (Parques, APAs e RPPNs) (Tabela 1). No entanto, eventos de Protected Areas Downsizing, Downgrading and Degazetting (PADDD), como a falta de Planos de Manejo (PM) ou de sua implantação efetiva, além da fiscalização deficitária e pressões sociais e econômicas para a desafetação de parte dessas áreas (como vem ocorrendo no PETAR), comprometem os objetivos e a própria existência de várias UCs brasileiras. Nesse sentido, o reconhecimento de áreas e sítios importantes para a conservação de morcegos constituí um forte argumento a favor não só da criação de novas UCs, mas também para a implementação de medidas de solução dos problemas nas atuais, como a agilização na realização, aprovação e implementação de PMs, associada ao investimento na fiscalização efetiva.
AICOMs e SICOMs nas políticas ambientais brasileiras
AICOMs e SICOMs são análogas às Áreas Importantes para a Preservação de Aves (ou Important Bird Areas, IBAs), designadas com base em um programa coordenado pela BirdLife International. No Brasil, esse programa está a cargo da Sociedade para a Conservação das Aves do Brasil, a SAVE Brasil. Os critérios para proposição de IBAs são similares aos aplicados para AICOMs e SICOMs: presença de espécies globalmente ameaçadas; espécies com distribuição geográfica restrita; espécies restritas a um bioma; e áreas de congregação de aves. AICOMs e SICOMs, como as IBAs, não são unidades de conservação oficialmente reconhecidas, e as autoridades dos diversos países exibem diferentes níveis de interesse e endosso dessas áreas.
No Brasil, novas propostas de AICOMs e SICOMs estão sendo elaboradas e ainda não houve o encaminhamento de solicitação de reconhecimento, por parte das autoridades ambientais, da importância de AICOMs e SICOMs como estratégia para a preservação não apenas dos morcegos, mas de todo o ecossistema. O número de AICOMs e SICOMs brasileiras ainda é modesto em vista de seu vasto território e faltam planos de ação consolidados pelos órgãos ambientais centrados na proteção e conservação dos morcegos que incluam tais áreas e sítios. Vários biomas e amplas regiões geográficas não contam com nenhuma dessas áreas e sítios, como é o caso do Cerrado, do Estado da Bahia e da região sul do Brasil, cabendo um esforço por parte das autoridades ambientais e órgãos de fomento à pesquisa no sentido de priorizar estudos quiropterológicos nessas áreas.
É fundamental que os órgãos ambientais reconheçam a importância de estratégias como AICOMs e SICOMs para a conservação de ecossistemas inteiros, promovendo e apoiando estudos que forneçam base científica para a identificação dessas áreas, inserindo-as nas políticas ambientais brasileiras e utilizando-as, por exemplo, como base para a criação oficial de áreas protegidas.
Agradecimentos
Ao Programa para a Conservação dos Morcegos no Brasil (PCMBrasil) e, em particular, aos autores das propostas das AICOMs e SICOMs certificadas até dezembro de 2022. Somos ainda gratas a Alexandre Pinhão da Cruz, Clayton F. Lino, Alexandre Camargo, Nicoletta Moracchioli e Isabel Resende, pela cessão das fotos.
Referências
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Tabela 1 – Áreas e Sítios Importantes para a Conservação de Morcegos (AICOMs e SICOMs, respectivamente) brasileiros, com localização, bioma, critérios para reconhecimento e certificação e ameaças locais. Listas Vermelhas = espécies constantes de listas vermelhas da IUCN, do Brasil e/ou do Estado em qualquer categoria (ameaçada, vulnerável ou dados insuficientes). Baseada em [1].
Designação Coordenadas |
Localização |
Bioma |
Critérios para certificação |
Ameaças locais à quiropterofauna |
AICOMs |
||||
A-BR-001 Alto Ribeira e Alto Paranapanema 24°12’ - 24°36’ S; 48°03’ - 48°36’ W 190.000 ha |
Municípios: Iporanga, Ribeirão Grande e Sete Barras no sudeste de São Paulo (P.E. Intervales e P.E. Turístico do Alto Ribeira) |
Mata Atlântica |
1. Listas Vermelhas (Myotis ruber, Natalus macrourus, Diaemus youngi, Diphylla ecaudata), limite sul da distribuição de Glyphonycteris sylvestris (rara), Phylloderma stenops (rara), Lonchorhina aurita (pouco comum), Sturnira tildae, N. macrourus. 2. Abrigos em rocha para espécies de interesse e flutuações sazonais na abundância total de morcegos, evidenciando migrações periódicas, colônias maternidade de três espécies pouco comuns: Trachops cirrhosus, Anoura geoffroyi e Lonchorhina aurita. 3. Alta riqueza, com pelo menos 42 espécies. |
Extração de calcário e minérios (chumbo e prata) na área de influência, poluição e visitação de abrigos. |
A-BR-002 Serra das Almas 5°15’- 5°00’ S; 40°15’ - 41°00’ W – 6.146 ha |
Municípios: Crateús e Buriti dos Montes no Ceará (RPPN Serra das Almas) |
Caatinga |
1. Listas Vermelhas (Natalus macrourus, Micronycteris sanborni, Chiroderma vizottoi, Tonatia bidens, Lonchophylla inexpectata). 2. Presença de cavernas e outros abrigos em rocha. 3. Alta riqueza, com pelo menos 27 espécies. |
Perda de habitat (fogo), caça. |
A-BR-003 Pedra de Abelha 5° 35’ 9,23” S; 37° 38’ 3,11’ W 80.560 ha |
Municípios: Felipe Guerra, Governador Dix-sept Rosado, Caraúbas, RN (APA Pedra de Abelha) |
Caatinga |
1. Listas Vermelhas (Lonchorhina aurita, Furipterus horrens, Natalus macrourus). 2. Elevado número de abrigos em rocha para espécies de interesse para conservação. 3. Alta riqueza de espécies (14 espécies em cavernas). |
Perda de habitat; destruição e perturbação de abrigos. |
A-BR-004 Serra do Feiticeiro 5°48’46,95”S; 36°10’34,60” W 39.515 ha |
Município: Lajes, RN |
Caatinga |
1. Listas Vermelhas (Xeronycteris vieirai, Furipterus horrens: rara), interesse para conservação (Lonchophylla inexpectata: prov. endêmica). 2. Abrigos em rocha para espécies de interesse para a conservação. 3. Alta riqueza de espécies (21 espécies). |
Turbinas eólicas, perturbação de abrigos, conflitos morcegos-humanos. |
A-BR-005 Sítio Bons Amigos 26°01´46” S; 56°46´17” W 1.974 ha |
Município: Manaus, AM (RPPN Sítio Bom Amigos) |
Floresta Amazônica |
1. Espécies de interesse para conservação (Saccopterix bilineata, Gardnerycteris crenulatum, Ametrida centurio). 2. Presença de abrigos em rocha para espécies de interesse para a conservação 3. Alta riqueza de espécies (25 espécies na área) |
Perda de habitat; destruição de abrigos urbanização, atropelamentos. |
A-BR-006 Complexo de Cavernas do Maroaga 02°03´21,52” S; 59°57´55,61” W 374.700 ha |
Município: Presidente Figueiredo, AM (APA Complexo Cavernas do Maroaga) |
Floresta Amazônica |
1. Listas Vermelhas (Vampyrum spectrum), espécies de interesse para a conservação (Phyllostomus hastatus, Peropteryx trinitatis). 2. Abrigos em rocha para espécies de interesse, colônia maternidade de Carollia perspicillata. |
Perda de habitat, destruição e perturbação de abrigos. |
SICOMs |
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S-BR-001 Cais do Porto de Marabá 5°20’21,38” S; 49°7’32,72” W |
Município: Marabá, PA |
Floresta Amazônica |
1. Espécie com papel importante para o funcionamento ecossistêmico no controle de insetos (Noctilio albiventris). 2. Local de agregação, colônia maternidade. |
Fragmentação de habitat, desmatamento, urbanização, conflitos morcegos-humanos. |
S-BR-002 Ponte de Palmas dos Morcegos 10°11’06” S; 48°22’02” W |
Município: Palmas, TO |
Floresta Amazônica |
1. Espécie com papel importante para o funcionamento ecossistêmico no controle de insetos (Nyctinomops laticaudatus). 2. Local de agregação, colônia maternidade. 3. Grande agregação de espécie migratória. |
Exclusão de abrigos. |
S-BR-003 Furna Itapeva 24’22” S; 49º 51’5” W |
Município: Dom Pedro de Alcântara, RS |
Mata Atlântica |
1. Espécie de interesse para conservação (Anoura geoffroyi: limite sul da distribuição). 2. Abrigo importante para reprodução (e.g., Chrotopterus auritus) e para morcegos migratórios (Artibeus lituratus, A. caudifer). 3. Alta riqueza de espécies (pelo menos 9 espécies). |
Perda de habitat; perturbação no abrigo, poluição, conflitos morcegos-humanos, atropelamentos. |
S-BR-004 Caverna Serra das Andorinhas 06°03’00’’ S, 48°22’30’’ W |
Município: São Geraldo do Araguaia, PA (Parque Estadual da Serra dos Martírios-Andorinhas) |
Ecótono Cerrado-Floresta Amazônica |
1. Listas Vermelhas (Lonchorhina aurita, Lonchophylla dekeyseri, Natalus macrourus, Furipterus horrens). 2. Colônia maternidade, com agregação excepcionalmente alta de Peropterix macrotis. (ca. 10.000 indivíduos). 3. Alta riqueza de espécies (16 espécies). |
Perda de habitat, perturbação no abrigo, conflitos morcegos-humanos. |
Figura 1 – Mapa com localização das Áreas e Sítios Importantes para a Conservação de Morcegos (AICOMs e SICOMs) brasileiros (elaborado por Silva, SSP).
Figura 2 – Morcegos registrados nas Áreas e Sítios Importantes para a Conservação de Morcegos (AICOMs e SICOMs) brasileiros. A: Trachops cirrhosus; B: Anoura geoffroyi; C: Chiroderma doriae vizottoi; D: Carollia perspicillata; E: Diphylla ecaudata; F: Tonatia bidens; G: Natalus macrourus; H: Artibeus lituratus; I: Noctilio leporinus; J: Micronycteris sanborni; K: Lonchophylla inexpectata; L: Phyllostomus hastatus. (Fotos: A-K: Alexandre Pinhão da Cruz; L: Isabel Resende).
Figura 3 – AICOM Alto Ribeira e Alto Paranapanema: Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira (PETAR). A: Vista geral da paisagem montanhosa; B: detalhe da mata; C: morcego Lonchorhina aurita voando em caverna. AICOM Serra das Almas: RPPN Serra das Almas; D-F: Vista geral da paisagem da Floresta Decidual nas fases chuvosa (D) e seca (E) e da área de Caatinga (F). (Fotos: A: Clayton F. Lino; B: Alexandre Camargo; C: Nicoletta Moracchioli; D-F: Alexandre Pinhão da Cruz).
Biodiversidade Brasileira – BioBrasil.
Fluxo Contínuo e Edição Temática:
Ecologia do Fogo e Conservação do Bioma Pantanal
n.4, 2024
http://www.icmbio.gov.br/revistaeletronica/index.php/BioBR
Biodiversidade Brasileira é uma publicação eletrônica científica do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) que tem como objetivo fomentar a discussão e a disseminação de experiências em conservação e manejo, com foco em unidades de conservação e espécies ameaçadas.
ISSN: 2236-2886
Anexo 1
Diretrizes para Aplicação de AICOMs e SICOMs (https://www.relcomlatinoamerica.net/¿qué-hacemos/conservacion/aicoms-sicoms.htm