Editorial
Ecologia do Fogo e Conservação do Bioma Pantanal
Christian Niel Berlinck, Luanne Helena Augusto Lima, Cezar Chirosa, Carla Polaz, Lara Gomes Côrtes, Gerson Buss
A Revista Biodiversidade Brasileira tem uma posição relevante na divulgação de informações importantes para a gestão do fogo no Brasil ao publicar artigos científicos sobre ecologia do fogo. Já foram lançados cinco números temáticos distintos tratando deste tema, sendo este o sexto. Estes trabalhos acompanham as alterações nas estratégias de gestão do fogo, em especial a mudança de paradigma da sua exclusão para a implementação do Manejo Integrado do Fogo (MIF), respeitando as necessidades culturais do uso do fogo e sua função como fator ecológico, ou seja, aliando a sustentabilidade econômica com a conservação da sociobiodiversidade [1].
Em 2011, ano de lançamento da revista, em seu segundo número intitulado Manejo do Fogo em Áreas Protegidas (https://revistaeletronica.icmbio.gov.br/index.php/BioBR/issue/view/15). Já em 2016, outro número temático com o mesmo título disponibilizado em (https://revistaeletronica.icmbio.gov.br/index.php/BioBR/issue/view/44). No ano de 2019, em decorrência da 7a Conferência Internacional sobre Incêndios Florestais (Wildfire) que ocorreu no Brasil, a revista publicou os anais do evento em português (https://revistaeletronica.icmbio.gov.br/index.php/BioBR/issue/view/65), e, em 2020, lançou os anais em inglês (https://revistaeletronica.icmbio.gov.br/index.php/BioBR/issue/view/69). Em 2021 publicou os artigos produzidos pelos principais palestrantes (https://revistaeletronica.icmbio.gov.br/index.php/BioBR/issue/view/72).
Este número temático, lançado em novembro de 2024, é o primeiro a tratar da gestão do fogo em um único bioma, o Pantanal, e em um momento de aprofundamento da crise climática. A publicação de conhecimentos novos tratando de um evento recente de grande impacto no bioma é fundamental para que o conhecimento científico possa subsidiar a implementação de estratégias de gestão para prevenir a ocorrência de incêndios em vegetação em escala de paisagem. Essas estratégias devem integrar os diversos tipos de interesses e interessados, indo desde a conservação e abrangendo setores como turismo, pesca, pecuária tradicional, atentando para os interesses e necessidades de povos e comunidades tradicionais e indígenas. O triângulo do MIF tem a ecologia do fogo como base de sustentação para decidir as melhores estratégias e técnicas de manejo do fogo, desde sua importância como fator ecológico até sua exclusão, integrado com o respeito e ordenamento do uso do fogo com fins culturais e econômicos [2][3].
Durante o biênio 2019/2020, ocorreu uma das secas mais acentuadas que se teve notícia no Bioma Pantanal. Em 2020, a redução dos níveis de alagamento, as altas temperaturas e os ventos fortes, em associação com alterações no uso e ocupação histórica do solo, deixaram o combustível vegetal acumulado mais suscetível ao fogo. Diversas ignições provocadas pelo homem, associadas a algumas ignições por raios, e potencializadas pelas condições climáticas, geraram os incêndios mais severos e extensos de que já se teve registro no Pantanal [5]. Como resultado, aproximadamente 30% do bioma queimou com alta intensidade e severidade, com incêndios de subsolo, terrestres e aéreos, simultaneamente [5]. A fauna sofreu impactos diretos com queimaduras e mortalidade [6] e indiretos com a alteração drástica do ambiente [4] e, afetando tanto a diversidade quanto a abundância de espécies [7]. As comunidades tradicionais e povos indígenas pantaneiros também sofreram impactos socioeconômicos.
Órgãos públicos das três esferas de governo, movimentos da sociedade civil e ONGs se organizaram para combater os incêndios, mitigar os efeitos negativos sobre a sociobiodiversidade, monitorar e pesquisar para entender o ocorrido, seus efeitos, e planejar ações eficientes para que incêndios desta magnitude não se repitam. Como resultado desses esforços, o ICMBio implementou o projeto “Avaliação do Impacto do Fogo sobre a Biodiversidade do Pantanal”, que se articulou com outras iniciativas, destacando-se: O Projeto “RPANTANAL – Rede Pantanal de Pesquisa/PPBio: I – Desenvolvimento de instrumentos para compreensão, gestão e prevenção de incêndios catastróficos no Bioma Pantanal” apoiado pela FINEP/MCTI; o Projeto “Avaliação do Impacto do Fogo sobre a Biodiversidade e o Solo, Contribuições para o Estabelecimento do Manejo Integrado do Fogo no Pantanal” apoiado pela SEMA-MT e FAPEMAT (Edital nº 012/2020); e o “Estudo de Longa Duração dos Efeitos do Fogo ao Longo do Gradiente de Inundação no Pantanal” apoiado pelo CNPq/MCTI/CONFAP-FAPS/PELD nº 21/2020.
Diversas pesquisas têm demonstrado o momento crucial para se pensar a conservação do Pantanal, Marengo et al. [8], por exemplo, demonstram que eventos climáticos extremos serão mais intensos e frequentes, como percebido no biênio 2019/2020 e também vivenciado neste ano de 2024 com a seca severa, os baixos níveis de inundação e as temperaturas elevadas. Isto demonstra ainda mais a necessidade de produção de conhecimentos científicos que auxiliem no entendimento dos efeitos do fogo sobre a sociobiodiversidade do Pantanal, e que orientem a implementação de ações de prevenção de incêndios em vegetação, bem como ações de mitigação dos efeitos negativos.
Hardesty et al. [9] classificaram o Pantanal com ambiente pirofítico, assim como o Cerrado e o Pampa. Assim, a problemática enfrentada pelo Bioma está mais relacionada à alteração do regime histórico do fogo, ou sejam, alteração da frequência de incêndios, época de ocorrência, ambiente afetado, e extensão da área atingida; do que com sua ocorrência [10]. Excluir o fogo de ambientes pirofíticos não é mais tido como solução uma vez que altera a paisagem e a ocorrência de espécies, além de aumentar o acúmulo de combustível disponível para queimas potencializando a ocorrência de incêndios [9].
Neste sentido, os artigos publicados no volume 14, número ٤, intitulado Ecologia do Fogo e Conservação do Bioma Pantanal abordam questões que envolvem os efeitos do fogo sobre o ambiente, biodiversidade e cultura. São tratadas questões sobre a importância histórica do fogo para manutenção cultural e econômica das comunidades pantaneiras, bem como esta relação é fundamental para manutenção do equilíbrio do Pantanal que conhecemos hoje, além é claro, do papel da sociedade no seu uso correto e não prejudicial para a sociedade e para o clima.
Outro ponto crucial tratado em alguns artigos, caracteriza o Pantanal como uma savana inundável, ou seja, um ambiente que evoluiu com a presença do fogo e que é fruto desta interação com os níveis inundação. Como consequência da interação destes dois drivers, fogo e água, a fauna e a flora apresentam adaptações à interação entre a ocupação humana há pelo menos 8.000 anos [11] e o regime histórico de fogo e inundação. Neste sentido são abordados efeitos diretos e indiretos, positivos e negativos, do fogo sobre macrohabitat do Pantanal, fitofisionomias, ictiofauna, répteis e mamíferos (arborícolas e terrestres), e como a restauração pode auxiliar na mitigação dos efeitos negativos.
Dentre as diversas metodologias de análises uma merece destaque por seu caráter inovador no Brasil, a utilização de técnicas de DNA Ambiental Metaborcoding para monitoramento de biodiversidade e suas interações com alterações ambientais, em levantamentos não invasivos e que permitem identificar espécies raras, de pequeno porte, crípticas e elusivas.
Por fim, esperamos que os artigos aqui publicados contribuam para tomada de decisão para conservação do Pantanal, integrando conservação ambiental com sustentabilidade cultural e econômica, e que ao mesmo tempo apresente questões e desperte curiosidade para induzir pesquisas continuadas e futuras.
Referências
1. Myers RL. 2006. Living with Fire: Sustaining Ecosystems & Livelihoods Through Integrated Fire Management. The Nature Conservancy, Global Fire Initiative
2. Berlinck CN, Lima LHA. 2021. Implementation of Integrated Fire Management in Brazilian Federal Protected Areas: Results and Perspectives. Biodiversidade Bras. 11(2): 1-11.
3. Silva CS, Fontoura SCC, Garda AB, Lima LHA, Berlinck CN. 2022. Fogo: da catástrofe à conservação ambiental. Revista Ciência Hoje. n.392
4. Berlinck CN, Lima LHA, Pereira AMM, Carvalo-Junior EAR, Paula RC, Tomas WM, Morato RG. 2021. The Pantanal is on fire and only a sustainable agenda can save the largest wetland in the world. Brazilian Journal of Biology, 82: e244200. https://doi.org/10.1590/1519-6984.244200
5. Libonati R, DaCamara CC, Peres LF, de Carvalho LAS, Garcia LC. (2020). Rescue Brazil’s burning Pantanal wetlands. Nature, 588(7837): 217-219. https://doi.org/10.1038/d4158-6-020-03464-1
6. Tomas WM, Berlinck CN, Chiaravalloti RM, Faggioni GP, Strüssmann C, Libonati R, Abrahão CR, Alvarenga GV, Bacellar AEF, Batista FRQ, Bornato TS, Camilo AR, Castedo J, Fernando AME, Freitas GO, Garcia CM, Gonçalves HS, Guilherme MBF, Layme VMG, Lustos, APG, Oliveira AC, Oliveira MR, Pereira AMM, Rodrigues JA, Semedo TBF, Souza RAD, Tortato FR, Viana DFP, Vicente-Silva L, Morato RG. 2021. Forest type modulates mammalian responses to megafires. Scientific Reports, 14: 13538. https://doi.org/10.1038/s41598-024-64460-3
7. Magioli M, Lima LHA, Villela PMS, Sampaio R, Bonjorne L, Ribeiro RLA, Kantek DLZ, Miyazaki SS, Semdeo TBF, Libardi GS, Saranhol BH, Eriksson CE, Morato RG, Berlinck CN. 2024. Forest type modulates mammalian responses to megafires. Scientific Report, 14: 13538. https://doi.org/10.1038/s41598-024-64460-3
8. Marengo JA, Alves LM, Torres RR. (2016). Regional climate change scenarios in the Brazilian Pantanal watershed. Climate Research, 68(2-3): 201-213. https://doi.org/10.3354/cr01324
9. Hardesty J, Myers R, Fulks W, 2005. Fire, ecosystems, and people: a preliminar assessment of fire as a global conservation issue. George Wright Forum 22, 78-87.
10. Pivello VR, Vieira I, Christianini AV, Ribeiro DB, da Silva Menezes L, Berlinck CN, Melo FPL, Marengo JA, Tornquist CG, Tomas WM, Overbeck GE, 2021. Understanding Brazil’s catastrophic fires: Causes, consequences and policy needed to prevent future tragedies. Perspect. Ecol. Conserv. 19: 233-255. https://doi.org/https://doi.org/10.1016/j.pecon.2021.06.005.
11. Power MJ, Whitney BS, Mayle FE, Neves DM, de Boer J, Maclean KS, 2016. Fire, climate and vegetation linkages in the Bolivian Chiquitano seasonally dry tropical forest. Philos. Trans. R. Soc. B Biol. Sci. 371, 20150165, https://doi.org/10.1098/rstb.2015.0165.
Biodiversidade Brasileira – BioBrasil.
Fluxo Contínuo e Edição Temática:
Ecologia do Fogo e Conservação do Bioma Pantanal
n.4, 2024
http://www.icmbio.gov.br/revistaeletronica/index.php/BioBR
Biodiversidade Brasileira é uma publicação eletrônica científica do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) que tem como objetivo fomentar a discussão e a disseminação de experiências em conservação e manejo, com foco em unidades de conservação e espécies ameaçadas.
ISSN: 2236-2886